Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) publica o livro “A mata, as ervas e o axé”
Revisão: Rozana Soares, equipe Ascom
Na contramão de discursos hegemônicos que invisibilizam a presença negra na Amazônia, o Colar - Laboratório de Antropologia da Vida, Ecologia e Política, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), no mês de janeiro, publicou o livro “A mata, as ervas e o axé”. A obra, coordenada pela professora Luiza Flores, é uma parceria com a Editora da Universidade Federal do Amazonas (Edua/Ufam) e tem lançamento previsto para dia 21 de março, no PPGAS. A equipe do projeto foi formada pelos pesquisadores Damiana Bregalda, Elton Ibrahin de Vasconcelos Pantoja, Gláucio da Gama, Gabriel Henrique Pinheiro Andion, João Victor Marques Rodrigues, Karolline de Andrade Porto, Sthefanne Auzier de Freitas e Victória Fernanda Bastos de Matos.
Trata-se de uma contracartografia e coletânea de artigos, fruto do projeto de pesquisa que produziu o podcast "A mata, as ervas e o axé: Sabença de Terreiros", que apresenta, em seis episódios, entrevistas com lideranças afro-religiosas de Manaus e Iranduba, além de um vídeo-documentário de 34 minutos, nomeado "O cuidado é ancestral", que registou ciclo de diálogos chamado "Confluências Afro-amazônicas: ecologias, cuidado e povos de Terreiro", e mais três oficinas de "Saberes e Fazeres dos Povos de Terreiro", ministradas por lideranças afro-religiosas convidadas, realizadas na Ufam, no Museu da Amazônia (MUSA) e na Comunidade Serra Baixa, em Iranduba. A pesquisa foi financiada pelo programa Humanitas, vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam).
De acordo com a coordenadora do Projeto, professora Luiza Flores, o livro é mais um dos produtos integrados que agrega textos dos pesquisadores do projeto, de graduação, mestrado e doutorado, e traz consigo o resultado das oficinas de contracartografia feitas em quatro terreiros. “Desde o princípio, queríamos que esta publicação viesse associada a diferentes linguagens visuais e audiovisuais, para além da escrita acadêmica. Por isso, também pensamos em um livro que fosse interativo. A cartografia, por exemplo, é a sobrecapa do livro. Em uma das páginas iniciais há um QRcode que permite o acesso aos podcasts. Outro ponto importante é salientar que a relação com as comunidades não se dá apenas enquanto alteridades da equipe de pesquisa. Parte dos pesquisadores envolvidos - e outros que se aproximaram a partir do projeto - são membros de comunidades de Terreiro. Fato que reforça algo muito caro para a equipe d'A mata, as ervas e o axé: a comunidade de terreiro não está fora da universidade. Ela está aqui dentro. Buscamos contribuir para o reconhecimento de tais saberes, como parte da justa reparação histórica, como aquilo que são: saberes, que resistiram há séculos de genocídios e epistemicídios, cujos fundamentos estão assentados nas ancestralidades africanas e afrindígenas”, explicou.
A docente contou ainda que o livro também contém ilustrações feitas pela artista Hadna Abreu, que acompanhou as oficinas de contracartografia e registrou em desenho as lideranças dos quatro terreiros. “Cada uma dessas imagens funcionam, elas mesmas, como cartografias, na medida em que trazem um conjunto de relações importantes para cada casa. Ou seja, materializam ecologias destes terreiros, que envolvem plantas, animais, pessoas, ancestrais, deidades, territórios, etc, histórias que aprendemos através das suas narrativas. A ideia do livro, portanto, parte dos desejos iniciais gestados por mim e pela antropóloga e artista Damiana Bregalda, que foi bolsista de Apoio Técnico do Projeto, mas brilhantemente transformados no nosso encontro com Hadna Abreu, que topou o imenso desafio de fazer um mapa da cidade de Manaus, e de Victoria Oswaldino, que foi a responsável pela editoração do livro”, destacou a professora.
O livro e a cartografia podem ser acessados pelo link na bio do Instagram do Projeto @amataaservaseoaxé
Parcerias com os terreiros
Os terreiros parceiros que fizeram parte do projeto foram Ààfi n Ìyá Omi Àṣ ẹ Ọ̀ ṣun – Templo de Oxum, liderado pelo sacerdote Alaomi de Lógun Ẹ̀dẹ; Casa de Oração de Joana Gunça e Júlio Galego, sob liderança de Pai Willames e Mãe Rosa; Terreiro de Mina Jêje-Nagô de Oxum Apará, sob liderança de Vodunsi Hunjaí Orny de Oxum Apará; Templo de Tambores de Mina Jeje-Nagô Xwê Ná Sin Fifá, sob liderança de Nochê Hunjair Flor Ty Navê e de Vonduncy Hunjai Luiz de Badé. Sobre o trabalho em conjunto, a professora Luiza Flores, enfatizou a relevância dos terreiros aliados, que abriram suas casas, suas vidas, para receber e compartilhar com os pesquisadores as suas histórias.
“Além destes terreiros, destacamos também a parceria com Fórum Permanente de Afrodescendentes do Amazonas (FOPAAM) e com os pesquisadores Hermes Veras, que atualmente está na Universidade Estadual do Ceará (UECE), e Beatriz Moura, vinculada à Universidade de Brasília (UnB) e à Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Houve outros terreiros que também compuseram conosco, por meio de entrevistas para os podcasts e da participação no Ciclo de Diálogos e Oficinas de Saberes e Fazeres, tais como as lideranças Pai Ribamar, Pai Ribamarzinho, Mãe Maria do Jacaúna, Ogã Kaju, Mametu Nangetu, de Belém do Pará, e Yashodhan Abya Yala, de Triunfo/RS. Além, claro, de pesquisadores de diversas instituições que estiveram conosco no ciclo de diálogos Confluências Afro-amazônicas: Universidade Estadual do Pará (UEPA), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Também reconheço a parceria com os profissionais contratados, como a artista Hadna Abreu, responsável pelas ilustrações; Rafael Ângelo, músico e produtor, responsável pelas edições do podcast; Gabriel Bôtto, responsável pela criação do roteiro, ao lado de Gabriel Andion, e edição do documentário; Victória Oswaldino, responsável pela diagramação do livro. Profissionais fantásticos que fizeram trabalhos primorosos”, ressaltou a docente.
Contracartografia
A pesquisa que deu origem ao livro partiu do entendimento de que todo mapa é uma representação política e por isso foi nomeado de contracartografia os esforços dos pesquisadores como uma prática crítica que questiona e desestabiliza as formas normativas e hegemônicas de entender o espaço. “Mais do que desconstruir e evidenciar os discursos de poder que conformam um mapa, nosso intuito também foi trabalhar com o imaginário, com o desejo de sensibilizar outras formas de sentirpensar a cidade de Manaus, a partir da perspectiva dos povos de terreiros, aprendidas por meio da escuta ativa e do envolvimento dos pesquisadores da equipe com essas comunidades. Afinal, muitos de nós são de comunidades de terreiro. Fizemos oficinas de contracartografia nos quatro terreiros parceiros. Dois deles de Tambor de Mina Jeje-Nagô, um de Candomblé Ketu e um de Umbanda”, disse a docente.
Apesar de suas diferenças litúrgicas, ao Projeto interessava, sobretudo, suas aproximações e relações com a cidade e as zonas de mata. “Essas oficinas foram conduzidas a partir de mapas oficiais da cidade e mobilizadas por duas questões centrais colocadas aos nossos interlocutores: quais são os lugares que potencializam os vínculos comunitários e quais lugares enfraquecem esses vínculos? Com isso, ouvimos muitas histórias que buscamos sistematizar em alguns pontos centrais - que constituem categorias-ícones dos mapas. Ao chegarmos nas categorias, iniciamos os diálogos com a artista Hadna Abreu para a construção visual dos ícones. Todo mapa é político e, por isso, também parcial. O que trouxemos para essa cartografia certamente não contempla as experiências de todos os terreiros da cidade, nem temos essa pretensão. E certamente não contempla a complexidade das experiências que os terreiros partícipes da pesquisa carregam. O que mais nos interessa é o que este mapa é capaz de fazer, de provocar, de desestabilizar naqueles que o vê. O contato com o mapa é também uma experiência com a cidade de Manaus”, salientou a coordenadora.
Antropologia e os povos de terreiro
A professora Luiza Flores também destacou outro ponto sobre a contracartografia. A relação da Antropologia com os povos de terreiro, fez com que fossem percebidas sobre outras formas representacionais. Deixou-se de lado os códigos binários do georreferenciamento digital para apresentá-lo por meio de traços e pinceladas de aquarela. “Não apenas o conteúdo do mapa, o que seria ali localizado, mas também a forma que o mapa assumiria. Nos perguntamos sobre o que aconteceria se negassemos o "Olho de Deus", aquela visualização que se quer onisciente, onipresente e onipotente, neutro e universal que facilmente encontramos nos mapas georreferenciados, ofertados por certas empresas multinacionais que povoam nossos cotidianos e, ardilosamente, tentam capturar nossos ímpetos imaginativos. Também não queríamos adotar no mapa o que chamamos de "Olho estrangeiro", muito comum nos mapas feitos nas cidades que habitam a beira de rios, cuja perspectiva é daquele que chega à cidade. Por isso, propomos ver Manaus como aqueles que habitam as zonas leste e norte, onde concentram-se muitos terreiros, e as zonas de mata, que são também morada de caboclos, encantados e deidades. E se olhássemos dessas áreas, o que veríamos? Por conta dessa mudança de perspectiva, e também porque intencionamos destacar no mapa as áreas verdes da cidade - escassas em uma capital conhecida por ser pouco arborizada - a cartografia pode produzir alguns estranhamentos em quem o vê. Um estranhamento que achamos muito bom. A artista Hadna Abreu topou esse grande desafio de fazer um mapa artístico, pois a exatidão do mapa nunca foi uma questão para nós, que ousasse na perspectiva da cidade. Mas que também ousasse na sua feitura. Um trabalho, sem dúvida, de muito fôlego e de muita experimentação. Nem Hadna, nem a equipe do projeto sabíamos de antemão qual seria o resultado. E disso também resulta sua beleza, que nos rendeu muitos aprendizados”, falou a professora.
Mais frutos
O projeto “A mata, as ervas e o axé” possibilitou encontros entre lideranças afro-religiosas, estudantes e parceiros. A coordenadora lembrou que um dos efeitos positivos do projeto foi o aumento da busca de estudantes de graduação e pós-graduação em trabalhar com as religiões de matriz africana. “Ou seja, eu vejo a ampliação desse campo de estudos na Antropologia da Ufam e fico muito feliz. Outro aspecto, que foi um objetivo do projeto, é ir na contramão de discursos hegemônicos que invisibilizam a presença negra na Amazônia, como um todo, e no Amazonas em particular. Uma frente de pesquisa e de atuação política que tem sido mobilizada por pesquisadores importantes, como Patrícia Melo e muitos de seus alunos/as, e que espero que essa publicação possa ser uma contribuição”, contou.
Já no âmbito das discussões antropológicas, o Projeto contribui na busca em aproximar os estudos com as comunidades de terreiro à ecologia política, sobretudo, em um contexto de urgências climáticas e ambientais que estamos todos vivendo. “Terreiros são Comunidades Tradicionais que cultuam deuses e entidades que habitam aquilo que o Ocidente nomeou "natureza". Entendem que pessoas, deidades, entidades e territórios estabelecem complexas relações consubstanciais e de interdependência. A despeito de suas complexas e importantes cosmopercepções, ocupam lugares de intensa vulnerabilidade socioambiental nas periferias das grandes cidades e pouco são considerados nos grandes debates sobre as transformações ecológicas produzidas pelo avanço predatório do capitalismo branco colonial, que colocam a Amazônia no centro do debate, vide a COP30 em Belém”, lembrou.
A coordenadora do Projeto enfatizou também que uma parte considerável dessas vulnerabilidades se adensam com as violentas manifestações racistas de demonização das comunidades de terreiro. “Lógicas propagadas do mono-mundo de aversão à diferença, que vai na contramão das lógicas inclusivas dos terreiros. O que se faz urgente é ouvirmos e pensarmos, enquanto partícipes dessa sociedade, junto com os terreiros sobre os assuntos que nos concernem a todos. Pensar, portanto, como uma ação coletiva que parte da inseparabilidade das lutas antirracistas e do debate ecológico. E quando dialogamos com os Terreiros, também precisamos considerar a inseparabilidade entre o que se convencionou chamar de "religioso" e de "ambiental", conceitos ocidentais que são fundamentais ferramentas políticas no diálogo com o Estado na denúncia de ataques e luta pela garantia de direitos, mas que são extremamente insuficientes quando pensamos a partir das complexas cosmopercepções dos povos de terreiro. Ou seja, desejamos, com Malcom Ferdinand, ultrapassar as fraturas produzidas pela lógica ocidental e aprender com os terreiros, na contramão da exploração e expropriação colonial dos territórios e dos corpos, outras formas de habitar a Terra”, salientou.
Próximos passos
Segundo a professora Luiza Flores, os próximos passos já estão sendo dados. “Fizemos o pré-lançamento do documentário em todos os terreiros parceiros. Foi um momento para pedir o agô, ou seja, a licença e a benção das lideranças para a publicização do documentário, mas também para incitarmos a reflexão coletiva sobre o que mais podemos fazer juntos, no sentido de fortalecer a autonomia comunitária das comunidades de terreiro em Manaus e arredores. Em breve queremos fazer o lançamento do livro e do documentário na Ufam, com a presença das lideranças afro-religiosas”, disse.
Além disso, o grupo Colar também realiza ação de extensão, financiada pelo PROEXT-PG da Capes, chamada "Combate ao racismo religioso e autonomia comunitária dos povos de Terreiro". A ideia é elaborar uma cartilha com as principais leis que asseguram os direitos dessas comunidades, com um passo a passo do que fazer quando vítima de racismo religioso, em diálogo com o que o Ministério da Igualdade Racial tem feito, e um passo a passo sobre como criar uma associação/organização religiosa. “O intuito não é apenas distribuir, mas realizar atividades nos terreiros”.
Paralelo a isso, há o projeto nomeado "Encontro de Saberes", que busca pautar na universidade o reconhecimento de saberes não-ocidentais, que inclui os povos de Terreiro, e segunda frente de trabalho abrange a participação dos pesquisadores em um projeto de pesquisa e extensão, em parceria com ecólogos do INPA e da Ufam, para prolongar a discussão sobre a relação dos povos de terreiro com as zonas da mata na cidade de Manaus, em especial a APA Manaós e a reserva Adolfo Ducke.
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