Primeira turma de yanomami com 42 professores indígenas recebe outorga em Licenciatura Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável, em Maturacá, São Gabriel da Cachoeira
Por Carla Santos
Ascom Ufam
Em São Gabriel da Cachoeira, outro importante capítulo da história da Universidade Federal do Amazonas foi escrito neste último sábado (20), quando 42 indígenas, da etnia yanomami, receberam o diploma de graduação do curso em Licenciatura Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável, numa cerimônia realizada no próprio território, aos pés do Pico da Neblina, o ponto mais elevado do Brasil.
O fato é histórico. A partir de agora, os yanomami fazem parte do grupo de etnias que acessam a educação de nível superior de qualidade e diferenciada, ofertada pela Ufam. Além deles, os baniwa, os tukano e os de língua yêgatu, também concluíram o curso nos meses de julho e agosto e tiveram suas cerimônias de outorga de grau igualmente em terra indígena. Atualmente, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população yanomami soma 38.000 pessoas, organizadas em um número superior a 200 aldeias dentro de uma área de 9.6 milhões de hectares que avança pela Amazônia Legal.
A expedição - e podemos assim chamar uma vez que a comitiva da Ufam também percorreu outras duas comunidades indígenas -, começou via aérea, em torno de 1h30 de duração, prolongou-se por mais 85 quilômetros de estrada não pavimentada de Cucuí, até alcançar o porto às margens do igarapé Iá-mirim. Nele não transitam embarcações de médio porte.
Com no máximo dois metros de profundidade, os pequenos barcos que também não podem ter cobertura para não enroscarem em galhos, só navega em águas mais profundas depois de percorrer 40 minutos mata a dentro, até desembocar no Iá-grande. Até a comunidade Maturacá, a viagem continua pelo Rio Cauaburis. Foram seis horas, quatro delas, sob chuva torrencial cuidadosamente perpassando por corredeiras, galhos de árvores caídas sobre o leito e em alguns momentos, por grandes rochas. O Alto Rio Negro tem essa essa característica, uma especificidade geológica. Nessa época do ano, de agosto até setembro, é inverno na região, portanto, é quando mais chove. O acesso às comunidades é facilitado e o rio está mais volumoso, nem por isso se torna mais seguro já que os riscos são iminentes.
Cerimônia e ritualística
Concluída a longa travessia, já prestes a anoitecer, a comitiva do reitor, professor Sylvio Puga, que pela primeira vez esteve em Maturacá, seguiu para o ginásio Padre Antônio Góes, onde se pôs à mesa da solenidade. Com ele, compuseram-na também, a diretora do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), professora Iraildes Caldas Torres, o coordenador da Licenciatura Indígena, Nelcioney Araújo e o diretor do Departamento de Articulação e Planejamento de Extensão (Darpex), professor Paulo Negreiros, representando o pró-reitor de Extensão, professor Almir Menezes. o comandante do 5o Pelotão Especial de Fronteira do Exército Brasileiro, tenente Celino também ocupou assento à mesa juntamente com o padre salesiano Raimundo Marcelo Cardoso Maciel.
A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), parceira da Universidade na execução do projeto, foi representado por Dário Cassimiro Baniwa que se pronunciou em nome do presidente, Marivelton Barroso.
Outras lideranças indígenas à mesa foram José Pereira Góes, da Associação dos Rios Cauaburis e Afluentes (AYRCA), a presidente da Associação das Mulheres Yanomami, Erika Vilela e os caciques Miguel Figueiredo e Antônio Lopes, que no início da cerimônia, lado a lado, convidaram o reitor para receber a saudação de dar as boas-vindas em língua e trajes ritualísticos: cocar de penas brancas, colares coloridos e longos, pinturas escuras no peito e queixo.
Os até então formandos homenagearam com o nome da turma o cacique Joaquim Figueiredo e os tuxauas Daniél Góes e Osvaldo Lins (in memorian).
Em sua fala, o reitor mencionou a Constituição Federal de 1988 pelo qual o Estado Brasileiro passou a incorporar a concepção de diversidade étnico-cultural, implicando dizer que os povos tradicionais estão, nos termos da lei, com os direitos resguardados. "Na prática, o desafio de implementar políticas voltadas a esses povos é do tamanho da nossa região. É difícil promover conhecimento de forma que as etnias não se desassociem da cultura, de seu valor de pertencimento étnico, de sua língua materna ao passo que se insira nos processos de aprendizagem", observou.
"Além da educação diferenciada, entendemos que o pleito de vocês vai muito além: saúde, agricultura ambientalmente responsável e espaço de fala onde a instrução científico-tecnológica pode ajudá-los dentro do que nos compete e nós iremos ajudar a traçar essa caminhada".
A diretora do IFCHS, professora Iraildes Caldas Torres, estudiosa, pesquisadora de gênero há mais de duas décadas das mulheres sateré-mawé e tikuna, de Maués, vibrou ao ver que dos 42 diplomas emitidos, 13 seriam conferidos a mulheres yanomami. Ela falou ainda dos avanços históricos desse povo dentro de um recorte temporal. "Estou academicamente feliz por vê-las se emancipando o que também é resultado do que observemos como resultado do intervalo de tempo a contar de 1952. Mais recentemente, há 30 anos as terras yanomami foram demarcadas e vocês têm buscado equilibrar apoderamento diante do mundo e cultura. Hoje, vocês têm um novo capítulo, uma nova conquista, que é importantíssima: a educação. É a educação o grande movimento do desenvolvimento humano", considerou.
Convidado para se pronunciar, o comandante do 5º Pelotão Especial de Fronteira do Exército Brasileiro, tenente Celino, foi sucinto nas palavras. "Desejo sucesso ao que vocês se propuserem a fazer. Prossigam na caminhada e agreguem mais conhecimento em prol do desenvolvimento desta região da qual nos orgulhamos", disse.
Para o representante da Foirn, Dário Cassimiro Baniwa, quem ganha com o acontecimento é o povo indígena. "Desde o início dos anos 2000 estamos nesta luta. Só em 2009 conseguimos consolidar esse objetivo de alcançar o ensino superior com um conteúdo que refletisse a nossa realidade. Em 2010 houve enfim a seleção e foi no ano de 2014 que a Licenciatura iniciou suas atividades, efetivamente. Nossa luta é árdua e de anos, não acabará. Hoje, contudo, é noite de celebração", frisou.
O paraninfo da turma, padre salesiano Raimundo Marcelo Cardoso Maciel, usou de metáfora para situar os então formandos dentro de uma contexto de responsabilidade para com as suas comunidades. "Todos os rios correm para o mar, contudo, o mar não se enche. Os rios tornam para o mesmo lugar de onde saem para tornarem a correr. Em Eclesiastes 1:7, a que Leandro Tocantins também se referiu em livro, eu me debruço para lembrar a vocês da sua essência e pedir que voltar aos seus lugares e contribuam com eles. Vocês não podem retornar iguais. Devem voltar ainda mais conscientes do que os cercam", ressaltou.
O coordenador do curso de Licenciatura Indígena, professor Nelcioney Araújo, salientou que em mais de 500 anos de registros históricos indígenas, esta é a primeira vez que os yanomami recebem ensino superior diferenciado e especialmente, na presença da autoridade máxima da instituição que também é centenária.
"Três momentos marcantes na história passam por vocês. o primeiro na década de 1970, com a construção da Perimetral Norte; nos anos 1980 e início dos de 1990, o conflito entre contra centenas de garimpeiros em balsas que invadiram o território e mais recentemente, a demarcação das suas terras. Desde os anos de 1970, os yanomami sofrem com intervenções e ameaças, fosse pelo avanço dos não índios próximo às suas aldeias, mineração, extração ilegal como por doenças e reversão de direitos. É preciso ficar atento sempre. Mas, nem tudo é lamento. Esta é a oportunidade de festejar e também lembrarmos daqueles que muito contribuíram, como a professora Margarida Pereira e o professor Júlio Góes, bem como do professor Frantomé, Luiz Fernando (in memorian), professores Raimundo Nonato e Ivani Ferreira", salientou.
Ao término da solenidade e em seu pronunciamento, o reitor enalteceu as parcerias para instituir a Licenciatura como uma graduação regular e continuada, como com a firmada com a Foirn e prefeituras municipais como no caso de Santa Isabel do Rio Negro.
"Não fazemos nada sós. A construção é coletiva. Do professor que se junta à empreitada e assume o desafio de educação no meio da floresta, às estruturas e instituições governamentais ou não que cooperam por um bem maior que é prover para garantir a segurança e o desenvolvimento do nosso povo e da nossa região", considerou.
O reitor também nominou aqueles que, na história da Licenciatura Indígena, tiveram em suas vidas a Amazônia e os povos indígenas como bandeira de luta. Ele citou os ex-coordenadores da Licenciatura, professores Frantomé, Luiz Fernando (in memorian) e Ivani Ferreira, o ex-diretor do IFCHS, professor Raimundo Nonato e o TAE, Silvio Teles.
Resgate histórico e visibilidade
A Universidade Federal do Amazonas do Amazonas está em São Gabriel da Cachoeira desde a década de 1990, quando chegou ofertando o curso de Filosofia, seguidos por outros cursos da área das humanidades. Pouco mais de 30 anos depois, atendendo e sensibilizada com a mobilização dos povos indígenas, organizou e executou um inédito projeto de levar educação diferenciada à calha do Rio Negro.
Segundo o professor Nelcioney, coordenador do curso de Licenciatura, não há experiência similar à que a Ufam executa, com exceção a de uma em Roraima, denominada Isikiran, ainda assim, de menor abrangência, tendo em vista a proporção populacional e a extensão territorial. São Gabriel da Cachoeira, vale salientar, é o município com maior número de etnias do País. Ao todo, são 23, o que representa mais de 97% local, que se identifica como sendo indígena. São quatro idiomas co-oficiais: tukano, baniwa, yêgatu e yanomami.
Com 113 anos de fundação, a Ufam sente orgulho de ser a primeira instituição do país a ir a comunidades indígenas a conferir outorgas de grau em um curso de graduação superior e diferenciado, voltado aos povos indígenas. Os baniwa, em Taracuá e os tukano, em Tunuí Cachoeira foram as duas primeiras comunidades indígenas a receberem essa Licenciatura e também contaram com cerimônias respeitando as liturgias tanto acadêmicas quanto nativas . A primeira outorga que fez parte da programação aconteceu em Santa Isabel do Rio Negro, na sede do município.
Durante a solenidade de colação de grau, o reitor recebeu das lideranças indígenas o pedido de fazer de Maturacá um polo, tal qual são polo Baniwa, Tukano e Yegatu (baré). No mesmo documento, essas lideranças demandaram a universidade por cursos de EAD, que já são, em sua parte, ofertados pelo Centro de Educação a Distância.
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