Tese inovadora de Michele Pires, primeira travesti a defender doutorado na Ufam, aborda ativismo lésbico negro e afro-indígena
A pesquisadora Michele Pires Lima defendeu seu doutorado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) com um trabalho chamado "Sob o espelho de Oxum: afetos, maternagem e ações sociopolíticas de Mulheres Lésbicas Negras e Afro-indígenas em Manaus/AM (1992-2020)". A apresentação aconteceu de forma híbrida, no mini auditório do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Nela, Michele falou sobre como as lésbicas negras e afro-indígenas ainda são pouco visíveis e pouco representadas nos movimentos sociais e na história do Brasil.
Um espelho de Oxum na academia
A então doutoranda começou sua apresentação cumprimentando Oxum, a Orixá dos rios e do cuidado, e destacou que o espelho, símbolo do feminismo, é uma das bases do seu trabalho. Sua pesquisa, orientada pelo Professor Doutor Júlio Claudio da Silva, focou nas memórias e experiências de ativistas lésbicas negras e afro-indígenas em Manaus, buscando entender o que as motivou a lutar pelos direitos humanos.
O período da pesquisa, de 1992 a 2020, foi escolhido por marcar o surgimento dos primeiros movimentos sociais LGBTQIAPN+ em Manaus e a posterior transformação das práticas ativistas, especialmente durante a pandemia de Covid-19, quando as ativistas expandiram suas ações para o apoio comunitário, distribuindo sopas em hospitais e cestas básicas.
O trabalho de Michele Pires Lima foi elogiado pela abordagem inovadora e pela sua contribuição significativa para o campo. O professor orientador do trabalho, Júlio Claudio da Silva, expressou sua satisfação com o resultado da pesquisa. “Tive a alegria de orientar e testemunhar a formação dessa grande intelectual. Foram anos felizes de trabalhos, prêmios e publicações”, comemorou.
Dhyene Vieira, doutora em História e membra do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (IGHA), também ressaltou a relevância do trabalho de Michele. “Ela é uma importante referência nos estudos históricos de gênero, uma pesquisadora à frente de seu tempo em nossa geração”, afirma Dhyene.
A pesquisa se baseou nas ideias de interseccionalidade, de Patricia Collins, e também utilizou metodologias de História Oral, como as desenvolvidas por Verena Alberti e Michael Pollak. A tese foi organizada em quatro capítulos: o primeiro trata da produção de conhecimento decolonial, o segundo aborda as experiências de desigualdade social e, o terceiro fala sobre a atuação política e social das ativistas, e o último discute a representatividade de mulheres lésbicas negras e afro-indígenas na mídia local. Cinco ativistas atuaram como colaboradoras na pesquisa, cujas histórias e experiências foram essenciais para a construção do trabalho.: Andria Paula, Francy Junior, Antonia Barroso, Sebastiana Silva e Izabel Cristina.
Michele Pires, por sua vez, lembra do poder transformador da Ufam, onde ela estudou desde a graduação em história, passando pelo mestrado até concluir o doutorado. “Minha presença aqui, como a primeira travesti a se doutorar na UFAM, cria visibilidade e demonstra para outras pessoas trans que é possível chegar a este lugar. Isso é especialmente importante em um país onde a população trans enfrenta baixos níveis de escolaridade devido à transfobia estrutural”, afirma Michele.
A pesquisadora expressou sua gratidão e alegria por ter conquistado o título de doutora: “Fico feliz e grata por estar neste lugar. Minha esperança é que eu seja a primeira de muitas. Que venha uma segunda, uma terceira e assim por diante. É necessário que nossos corpos, nosso conhecimento e nossas ideias se naturalizem na universidade. Que sejamos naturalizadas como seres humanos, pois a transfobia nos retira a nossa humanidade”.
A doutora Michele ressaltou a importância de políticas de inclusão, como as cotas sociais para pessoas trans na graduação e na pós-graduação. Ela cita dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que indicam que em 2022 apenas 0,02% dos estudantes de graduação eram pessoas trans e travestis, um número que diminui ainda mais na pós-graduação. “Esses números refletem a desigualdade socioeconômica de nossa sociedade. É por isso que políticas de acesso e permanência são necessárias. Isso passa por uma mudança de perspectiva sobre os corpos das pessoas trans na universidade: precisamos ser vistos como sujeitos de direito à educação”, enfatiza.
Para Michele, essa mudança de perspectiva também inclui a implementação de políticas antidiscriminação e a inclusão de discussões de gênero e sexualidade nas estruturas curriculares. “A educação em direitos humanos é fundamental em todos os cursos, para que seja cada vez mais entendido que todas e todos têm o direito de existir, de viver”, conclui.
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