Primeiro indígena a defender doutorado em Antropologia Social na Ufam, João Paulo Barreto, tem banca marcada para dia 4 de fevereiro
Intitulada ‘Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro’, o primeiro discente indígena, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS/Ufam), doutorando João Paulo Lima Barreto, defende sua tese de doutorado dia 4 de fevereiro, às 14h (horário de Manaus). A banca é formada pelos professores da Ufam, Gilton Mendes dos Santos (orientador), Carlos Machado Dias Júnior e Deise Lucy Oliveira Montardo; pelo professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), docente Geraldo Luciano Andrello e pela professora da Universidad Nacional Mayor San Marcos (Lima/Peru), Luisa Elvira Belaunde.
A defesa será online e poderá ser acompanhada aqui.
O trabalho é fruto de nove anos de pesquisas na pós-graduação e entende que os povos indígenas têm um modelo epistemológico diferente daquele adotado na educação formal. “A minha tese mostra que o conhecimento indígena funciona em uma outra lógica, com sua própria epistemologia e seus próprios conceitos. O ponto de partida é entender como o corpo é compreendido por seus operadores dentro dos conhecimentos indígenas. Trago a forma com que os indígenas, sobretudo, do Alto Rio Negro entendem o corpo e o porquê é importante entendermos o corpo para construirmos uma vida de qualidade e de equilibrio. Na medida que eu consigo entender o que eu sou, posso construir uma relação com o meu entorno. O conceito de corpo, do ponto de vista indigena, não é apenas biológico. Para nós, o corpo é a síntese de todos os elementos que existem (água, terra, floresta e animal)”, enfatizou.
O doutorando falou que é recente o olhar para os conhecimentos indígenas com o esforço de tentar entendê-lo. “Estamos lidando com dois modelos de conhecimento diferentes. O nosso, indígena, construído via oralidade, e o modelo ocidental, preponderantemente construído via escrita. Esse modelo ocidental sempre olhou para outros modelos de conhecimentos como não-ciência porque, aparentemente, não cumprem com requisitos considerados fundamentais como a objetividade. Daí, vem o fato dos não-indígenas olharem para o nosso conhecimento como algo que não tem lógica, conceitos formais ou experimentação, mas consideramos esse ponto de vista equivocado”, explicou o discente João Paulo.
Ao descrever o processo de construção do trabalho, o professor Gilton Mendes, orientador do discente João Paulo, falou da necessidade da universidade se manter aberta aos diferentes modos de conhecimento. “Temos uma parceria longeva e com isso foi possível estabelecer um ciclo de intensa interlocução e diálogo, em ambientes formais e informais. Uma relação de muito respeito e aprendizado mútuo com um esforço de construção de uma relação simétrica. Eu aprendi muito e fomos motivados, juntos, por uma ideia inicial de construir um trabalho baseado nos conhecimentos indígenas de autoria própria indígena. João Paulo representa uma possibilidade real de ingresso do pensamento indígena, ou melhor do ‘sujeito de conhecimento indígena’, dentro da academia para poder estabelecer ou fazer enxergar novos horizontes e novas janelas de compreensão do mundo”.
Trajetória
Nascido na comunidade São Domingos, no Alto Rio Negro, etnia Yepamahsã (Tukano), João Paulo é graduado em Filosofia e mestre em Antropologia Social pela Ufam. Ao relembrar sua trajetória, falou das dificuldades e do encontro com a Antropologia. “Eu entrei no mestrado querendo entender esse modelo de concepção de conhecimento, chamado Ciência, a partir do nosso modelo indígena. Depois do trabalho de campo, realizado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), percebi que eu não tinha muito embasamento “teórico indígena” para interpretar e analisar aquelas práticas que eu estava acompanhando no laboratório. Nesse momento entrei numa certa crise e, pensando em conjunto, eu e o professor Gilton Mendes, entendemos que era preciso voltar para o meu mundo de conhecimento indigena e entender e sistematizar melhor os próprios conceitos indígenas que poderiam me dar base para interpretar tudo aquilo.”, destacou.
Sobre esse retorno às origens, João Paulo decidiu trazer o seu pai para ajudar a resgatar os conhecimentos indígenas. “Apresentei para meu pai a minha pergunta de pesquisa: “como que os indígenas Yepamahsã concebem e classificam os peixes?” Escolhi os peixes porque para nós, indigenas do Alto Rio Negro, eles são considerados sujeitos ancestrais. Eu já tinha a lógica de classificação dos peixes pela Ciência e precisava sistematizar como nós, indígenas,pensamos e classificamos os peixes. Meu pai, inicialmente, ignorou minha pergunta e neste momento pude perceber que enquanto pesquisador, eu levei uma ideia bem formatada e elaborada para obter uma resposta. Descobri que as coisas não funcionam dessa forma. Precisei acompanhar a rotina e o ritmo do meu pai, por semanas, para ele começar a contar sobre o nosso conhecimento e como organizamos o cosmos, os seres e as coisas. Destaco, a importância da oralidade para os povos indígenas. Nosso conhecimento é passado assim. Entretanto, meu pai não falou da forma que eu perguntei, separadamente, porque esse conhecimento está inserido dentro de um contexto maior, que não é possível ser pensado separadamente. Minha dissertação discutiu equívocos na tradução, além de entender como o mundo terrestre foi organizado pelos seres que nós chamamos de Waimahsã”, explicou.
O discente reconheceu que essa construção só foi possível porque o professor Gilton Mendes, enquanto orientador, estava aberto a essas reflexões e, mais, que estimulava exatamente este exercício. “Ele nunca me falou o que eu deveria fazer. O professor sempre me fez perguntas instigantes que me levaram a pensar nas categorias indígenas. Esse papel desempenhado pelo orientador foi fundamental na busca de ir além do que já conhecemos, do que está posto. Outro fato importante foi a nossa relação ser estabelecida em ambientes formais e informais. Os ambientes informais foram fundamentais para eu me sentir tranquilo e colocar as questões que me inquietaram, além, claro, das orientações coletivas no Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). Minha dissertação de Mestrado foi também fruto de um debate entre um grupo de indígenas, não-indígenas e professores na Ufam, a construção do trabalho não foi solitária, mas sim coletiva”, relembrou.
A dissertação de João Paulo Barreto resultou no livro ‘Waimahsã: peixes e humanos’ que propõe uma reflexão sobre o conjunto de narrativas míticas que incluem os feitos e as tramas vivenciadas pelos responsáveis pela organização do mundo, dos seres e das coisas. O livro faz parte da coleção ‘Reflexividades Indígenas’ que traz ainda as publicações ‘Agenciamento do mundo pelos Kumuã Ye’pamahsã: O conjunto de bahseses na organização do espaço Di’ta Nuhku‘ de Dagoberto Lima Azevedo; a publicação ‘Formação e transformação de coletivos indígenas do noroeste amazônico: do mito à sociologia das comunidades’, de autoria de João Rivelino Rezende Barreto; e o título “Bahsamori: o tempo, as estações e as etiquetas sociais dos Ye’pamahsã”, escrito por Gabriel Sodré Maia.
Academia Eurocêntrica e o Antropoceno
No que diz respeito à orientação de um indígena dentro de uma academia eurocêntrica, o professor Gilton Mendes relatou que é preciso entender o sistema e abrir janelas possíveis. “Nós estamos dentro de um sistema de entendimento do mundo construído a partir de uma matriz de pensamento cartesiano, iluminista, científico e especializado. E é justo esse o contexto em que as áreas do conhecimento e, consequentemente, um Programa de Pós-Graduação, dentro da universidade, está instituído historicamente. O ponto importante a ser pensado é: Uma vez isso dado, como você oportuniza sujeitos de outras tradições conceituais construir algo novo dentro desse ambiente? Não é fácil, porque toda a estrutura está montada para uma formação dentro dos padrões do status quo do modelo científico estruturado, das disciplinas e da especialização. Eu sou ciente disso e sei das mil limitações. Costumo dizer que nós estamos abrindo janelas dentro de uma cela, de modo a oxigená-la e permitir mais luz para se enxergar o mundo e poder relacionar melhor com ele”, pontuou.
O professor explicou que os indígenas vêm para a Pós-Graduação com uma experiência histórica de aprimoramento, compreensão e conquista do sistema científico. “Eles chegam na pós-graduação como estudantes, bem sucedidos, do sistema de educação formal, e aqui reside o maior desafio. Na minha experiência, com meus orientandos, o primeiro exercício, o mais duro e sistemático, é fazer com que o aluno indígena enxergue e elabore, em termos conceituais – digamos assim – os referenciais de conhecimento, epistemológicos, práticos, teóricos da sua tradição, e isso não é uma coisa trivial. Muitas vezes, os tímpanos não suportam este mergulho.
Inicialmente, o aluno indígena leva um susto para depois estabelecer todo um processo de desenvolvimento desses conhecimentos, que significa conversar com seus pais, parentes e conhecedores locais para poder entender melhor aquilo que ele já havia deixado para trás, que foi sistematicamente subestimado e desvalorizado historicamente, ou limitadamente interpelado pela educação formal mais recente. A partir daí, trazer os conceitos, os termos, as categorias e os modos de pensar indígenas se torna um exercício de mergulhador em águas profundas. João Paulo um exemplo de travessia desse processo, de vivência nesses mares . Diria que ele é um dos alunos mais bem sucedidos desse exercício”, contou.
Outro ponto relevante no trabalho do doutorando João Paulo são as noções que vão de encontro ao pensamento moderno que coloca o homem como sendo o centro das relações, sem considerar os demais seres. O professor Gilton explicou que o pensamento indigena nos ajuda a entender que esse modelo centrado no homem já deu provas do seu limite e da sua exaustão, que não se sustenta. “Se continuarmos assim, com esse modelo de relação, baseado no utilitarismo e na centralidade humana, haverá um ponto em que o planeta não suportará.. Outros modelos de relação podem nos trazer outras possibilidades, outros caminhos. Nós fazemos uma distinção conceitual e prática entre natureza e humanidade, em que os sujeitos desta detêm e dominam a primeira. Nos contextos indígenas a ideia de natureza não existe. Há uma relação entre os seres, agentes e sujeitos muito mais equivalente e simétrica, conceitual e prática. A tese do João Paulo aborda, justamente, a constituição do corpo humano por elementos e princípios do universo vegetal, animal, mineral, aquático, luminoso... Isto é, como uma síntese desses componentes do mundo. Portanto, um exemplo de concepção completamente distinta da nossa, centrada na biologia e no cristianismo”, disse.
Políticas Afirmativas
Inicialmente, João Paulo não estava interessado em Antropologia, inclusive, após terminar Filosofia na Ufam cursou até o quarto período de Direito na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Entretanto, houve uma aproximação com a Antropologia a partir do seu encontro e das provocações do professor Gilton e dos convites de palestras no Núcleo de Estudos da Amazônia Indigena (NEAI/Ufam). Em 2010, surgiu o edital de mestrado com vagas para indígenas no PPGAS, um dos primeiros programas da Ufam a instituir essa política pública.
O professor Gilton lembrou que o processo de construção de políticas voltadas aos indígenas inclui uma série de fatores. “O que antecede tudo isso é o fato de que quando decidimos abrir vaga de Pós-Graduação para indígenas, nós levamos em consideração que o PPGAS está inserido na Amazônia, cuja realidade indigena foi um dos fatores que motivou a criação do próprio Programa na Ufam. As vagas específicas para indígenas atende a uma reparação social e histórica, porém, mais do que isso, a possibilidade de abrir espaço para novas formas e concepções de mundo e, consequentemente, de produção do conhecimento. A presença dos alunos indígenas enriquecem a Antropologia e contribuem com a inovação da disciplina. ”, enfatizou.
De acordo com o discente João Paulo, dentro do PPGAS há um colegiado indigena que tem representatividade dentro do colegiado do programa. . “Temos avançado bastante com discussões como as defesas de trabalhos e escrita em nossa própria língua. Avançamos no sentido de uma seleção diferenciada, de um edital específico, fruto da nossa discussão, além de uma política diferenciada para proficiência em línguas estrangeiras, em que as línguas indígenas não estão subordinadas ao Português. Destaco, ainda, a criação do primeiro Centro de Medicina Indigena como fruto desse trabalho, tanto de pesquisa quanto de colocá-la em contato com toda a sociedade para descolonizarmos todos esses conceitos aprendidos. Precisamos fazer com que todos tenham contato com eles e participem disso também. Estamos colocando os conceitos indígenas para o debate e mostrando como eles operam. Somos detentores de conhecimentos e teorias; e a universidade precisa estar aberta para a multiculturalidade. O Amazonas é bom para isso porque somos mais de 63 povos diferentes, além dos negros, quilombolas, ribeirinhos, entre outros. Muita gente pensa que nós somos inseridos em um sistema de hierarquia tal como entendido pela ciência política, mas não somos. Nós nos organizamos pela complementaridade. Quanto mais diferenças, melhor. Podemos produzir, aqui, muitos modelos de conhecimentos a partir das lógicas locais”, explicou.
Passos seguintes
O professor Gilton Mendes vislumbra muitas possibilidades após a defesa. “Além de contribuir com a própria (re)construção do conhecimento antropológico, João Paulo vem sendo cada vez mais demandado como um interlocutor privilegiado para se discutir políticas diversas para ações entre os povos indígenas do Rio Negro e de outras regiões amazônicas. Há um campo de atuação bastante significativo, diferente e próspero para um bom profissional que traz os seus conhecimentos em um patamar equivalente ao modelo político-científico ocidental. João Paulo tem a segurança suficiente de que o seu cabedal de conhecimento, com mecanismos, formas e visões diferentes sobre o mundo, pode ser colocado na mesa para ser debatido no âmbito das políticas amazônicas no que diz respeito às áreas da educação, ciência e tecnologia, economia”, finalizou
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